desenho de Mima

Vocativo

16/12/10

Oi, amada, disse ele para começar a conversa pelo telefone móvel, ou celular. Fora o último a entrar no ônibus, tentando equilibrar através de estreito corredor uma mala e dois paletós, ou ternos, metidos em capas fechadas com fecho eclair, penduradas num dedo pelos ganchos dos cabides dos ternos, ou paletós, que ocultavam. Depois de colocar como pode essas coisas no bagageiro sobre as poltronas, sentou-se, inclinou sua poltrona, ajeitou-se e fez a ligação para a amada, patente no vocativo inicial.

Conversou, então, com a amada e disse de sua condição transitória de viajante, informou-a da hora prevista de sua chegada e combinaram lugar e tempo para se encontrarem. Ele falava sempre por alusões e elipses, onde o substantivo feminino parada servia para indicar situações, circunstâncias ou qualquer coisa - sabe aquela parada, amada, dizia, podemos ir lá etc. Tudo pontuado com o vocativo que me sugeriu uma Julieta apaixonada do outro lado da conversação. Por fim, desligou o telefone e, imediatamente, fez outra ligação.

Atendida a chamada, ele repetiu com a mesma ênfase: oi, amada. Imaginei que tivesse esquecido algum detalhe e ligara de novo para informar alguma parada que lhe tivesse escapado. Pouco depois, percebi meu engano, quando o ouvi afirmar à amada ainda estar em São Paulo, explicar que só seguiria amanhã e, depois de breve pausa, para conferir os cálculos, anunciar a hora provável de sua chegada, às tantas horas e tantos minutos e falou dos imprevistos que o retiveram onde, de fato, não estava, pois o ônibus já fazia a paisagem feia dos arredores das grandes cidades correrem como trem, acinzentada, por suas janelas com vidros escurecidos. Por tudo isso, explicava, só poderia vê-la, ela, amada dois, daí a dois dias, mas eles poderiam fazer isso e aquilo e ir lá e acolá, amada.

|home| |índice das crônicas| |mail|  |anteriorcarta1391 carta1392 carta1393 carta1394 carta1415

2455547.15307.1068