autorretrato [] Crônica do dia

Desconfie da memória

15/01/16

Há oito anos falava-se aqui de fadas e demônios. Lembro-me da mesa branca, sobra dos escritórios da enfoco e cenário da cena do violento tapa a esmagar um pequeno mosquito em voo indeciso e raso, rente ao tampo. A desproporção das massas o esfacelou em um cadáver irreconhecível. Do texto, é meu parágrafo preferido, mas em verdade não sou eu o autor. Já contei, talvez com alguma fantasia e em outro cenário, a cozinha do apartamento de minha mãe, a morte da formiguinha e as ilações de minha mãe sobre os desfechos das vidas.

Em verdade, é provável ter ela matado uma única dessas formigas tão pequenas, com fama de serem "boas para vista" (criança, acreditei ao pé da letra e comia descuidado as habitantes do açucareiro). Ao reler as divagações daquele texto a falar de mortes, inclusive das formiguinhas, chocaram-se o relato e as lembranças atuais, a sugerir não serem imutáveis nossas recordações - memórias não voltam como dados de um disco rígido, deixam-se colorir pelo presente, pelo acaso e por emoções.

Se fosse contar hoje aquela cena, diria ter minha mãe matado uma única formiga e com gesto titubeante pois, convencida de precisar fazê-lo pela razão, percebia-se estar condoída ao ultimá-lo. Pelas tábuas de Moisés, o verbo é intransitivo: "não matarás", ainda que todo animal se alimente de vida e dependa de alguma morte para sobreviver, seja a da cenoura ou da bezerra, da folha de grama ou da baleia.

A fada da crônica antiga apenas a sugeria inventar de alguma Manuela, como a de ontem e a enredar com o nunca ocorrido, como em qualquer ficção. Satanás, do outro lado, menosprezava a eventual obra por antecipação.

Ao tapa brutal no mosquito dei desculpa de o supor um ædes ægipti. Minha mãe saiu-se melhor ao estender seu gesto formicida a um Deus responsável pelo fim de cada vida.

 


Fri, 15 Jan 2016 13:34:47 -0200

eba

      sem assinatura

Que bom que tudo voltou a funcionar!


Fri, 15 Jan 2016 17:41:47 -0200

Sensacional...

Não conhecia a esperta sacada da Mãe:
Deus é o responsável pelos fins de todas as vidas.

Que maravilha você lembrar disso.

Bela sacada di Mami...

bjos

      sem assinatura

Não poderia conhecer, estávamos apenas eu e ela naquela noite no apartamento.
Mas o comentário dela ipsis litteris não lembro, não. O mais próximo é a frase da crônica antiga, Formiguinha, mencionada na crônica, eu acho.
Também admiro a sacada dela.

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