Ainda as paixões (2)

7/10/97 (publicada em 10/10/97)

Não podemos esquecer as palavras de nosso leitor (ou leitora): "Paixão não resolvida, não revelada, se eterniza ." Nos enrolamos tanto para dizer e não dissemos, apenas, que o eternizar depende de algum tipo de combustível, se abandonado a si mesmo, acaba em pouco tempo (em alguns meses, talvez). Tudo o que queria dizer era que nós fornecemos esse combustível para, digamos, vinte anos depois, ainda suspirar pela mesma "mulher de nossos sonhos", como se conta na biografia de Beethoven, por exemplo. Ou, para sonhar, de fato, com ela, ao dormir, mesmo que ao lado de uma outra, real a literalmente, palpável! Aí está: se não alimentarmos, com nossos pensamentos, com o culto de uma deusa morta, se não erigirmos um altar e um pedestal e a colocarmos numa altura inatingível sob a luz mística da mais gótica das catedrais, a paixão tem seu curso natural, seu ciclo de vida e morte. Morre de morte natural, como as folhas no outono.

Porém, transformamos a amada (ou amado - mais uma vez, leitoras, falo como homem e com a suposição de que essas coisas são equivalentes na psique do homem e da mulher) dizia, transformamos a amada em deusa e a paixão em religião. Adoramos o estar apaixonado, porque é um estado cheio de energia. Porque a vida se enche de cores e nosso dia a dia deixa de parecer o absurdo que é. Estar apaixonado é um estado maravilhoso. Experimenta-se um elã inédito. Nos encontramos com a Vida e, fascinados pela descoberta, atribuímos tudo isso a um outro ser. Daí a transformá-lo num deus (ou deusa)...

Não inventamos nada disso. Já disse: há cada vez mais obesos e a paixão emagrece. É possível, até, que nossos avós cultuassem a paixão com mais fé, como se sujeitavam mais aos ritos religiosos dominicais. Sem as paixões, talvez não existisse a poesia, grande parte de toda literatura e, com certeza, não teríamos uma só canção popular. O apaixonado é um possuído, como um santo ou um louco. Pode bater longos papos com anjos, duendes, bruxas, se de fato existirem bruxas, anjos e duendes. Ou, os inventa, se não existirem... Enquanto o verdadeiro estado de paixão o possui, é capaz de qualquer coisa, arrancar dos céus a Lua, como afirma o hino de Piaf, ou enfrentar com as próprias unhas um rinoceronte, que tenha um olhar mais suspeito em direção a sua amada. Tudo bem, nada disso é novidade pra ninguém...

O problema começa, a doença se instala, quando percebemos que o combustível natural da paixão, aos poucos, se esvai e a chama segue seu curso rumo à inexorável extinção... Desesperados por ver que, em pouco, restará a insuportável rotina de casa para o trabalho e do trabalho para casa, atribuímos àquele ser, que por acaso - e repito: pelos acasos e mistérios inexplicáveis da vida identificamos com um estado que é nosso, com a monumental transformação que aconteceu, apenas, dentro de nós. É aí que se transforma a paixão em religião, no pior sentido que essa palavra possa ter. Cultuamos como vivo aquilo que já morreu. Como acontece com qualquer religião organizada, a verdade se transforma em dogmas e repetições vazias de meia dúzia de refrões...

A leitora (o leitor?) fala de paixão não resolvida, não revelada. Ao dizê-lo, está falando exatamente do mito. Ouço no rádio que, ontem, comemoraram-se os trinta anos da morte de Che Guevara. Doutores disso e daquilo analisam o herói do povo cubano (e de muita gente mais). Ora, ele foi, por alguns meses, Ministro da Economia do eterno Fidel. Continuasse ministro e ninguém saberia, hoje, seu nome, sequer. Estaria lá, babando na gravata e assinando papéis e duplicatas, anônimo. Comemora-se, em quase todo mundo, os trinta anos da morte de um Herói, pelas razões apontadas pelo leitor (ou leitora?): a sua luta não foi resolvida, o seu sonho não foi revelado!

Não podemos adorar um igual. Os deuses precisam ser inatingíveis, as deusas não podem ser possuídas por simples mortais. Che Guevara é um mito, um herói, porque não realizou sua utopia e tornou possível, assim, a toda uma multidão alimentar com seu pensamento, com seus ideais, uma paixão coletiva. "Paixão não resolvida", que encerra, um mistério, um devaneio, uma promessa "não revalada" - como disse a leitora (ou leitor?) e que, por isso, "se eterniza".

Resta uma pergunta terrível: é possível viver apaixonado, em permanente estado de paixão pela Vida? Sem identificar esse estado de graça com qualquer pessoa, sem transformar em deuses, meros mortais? É possível tirar da própria vida o combustível para viver, e não, de nossos pensamentos, sonhos e projeções?


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