(de esporadicidade imprevisível)

O fim

04/03/19

Tu medes cinco ou seis milímetros. És delicada, quase transparente. Apalpas o novo mundo com tuas antelas filiformes e, a mim parece, ser-te tudo novidade, inédito para ti. Eu tenho mais de 300 vezes o teu tamanho, se compararmos massas ou volumes, a diferença será muito maior.

Minha espécie, autoproclamada sapiens, traz uma aversão atávica à tua e, por isto, te olho quase com ternura, sentimento sempre inspirado pelos muito jovens e, ao mesmo tempo, me vem o ímpeto de matar-te. Bem sei, passarás ainda por várias mudas, ou ecdises, modo escolhido pela seleção natural durante milênios para possibilitar ao inseto crescer, pois ele está encapsulado em um exoesqueleto e, de cada uma delas, sairás maior, mais escura até, por fim, emergir com asas e pronta para o casamento tão lindamente cantado por Braguinha, dona baratinha, tu com tua fita no cabelo e teu dinheiro na caixinha...

Tento te esmagar. Tanto quanto delicada, és esperta e muito ágil. Escapas sempre de minhas investidas. Temo estar se iniciando uma amizade — por que não? O principezinho aprendeu com a raposa as trilhas do mútuo cativar — e tu, como a vistosa raposa, és apenas outro ser vivo a proclamar por tua simples existência a maravilha sempre renovada da Vida. Projeto o futuro, outra singularidade do sapiens, e me certifico: não te quero adulta a compartilhar meus alimentos e tu estás bem na minha cozinha.

Enquanto cogito isto, tu resolves explorar a tábua de cortar alimentos facilitando-me o fim terrível, mas já inevitável, de nosso relacionamento. Pego delicadamente a tábua, na verdade feita de plástico, como quase tudo e a coloco na pia. Abro a torneira e tombas na pia. Covardemente te cubro com um fio de detergente. Insetos dependem da tensão superficial para não se afogar. Se fosse cinema, viria o letreiro: The End.

Mon, 4 Mar 2019 11:53:19 -0300

Que dizer que você gosta de assassinar as coitadinhas baratas..., né?

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Não, não gosto, mas as mato, sim.


Mon, 4 Mar 2019 15:15:40 -0300

A barata! odeio.. tenho medo... quando encontro com uma começo a gritar.
Acho que elas têm medo de mim... e saem correndo...começo a rir de tanta histeria.
elas devem ouvir bem, imagino.
São atávicos,principalmente das mulheres...
bjs
MHelena

Ignoro tudo sobre a audição da baratas. Sei que têm pelos pelo corpo sensíveis às menores vibrações. Devem ter aprendido, ao longo dos milênios, a se precaverem em face de um "inimigo" tão maior.

Minha mãe sempre contou que quase não se casou devido a sua reação quando apareceu uma barata no trem em que estava com seu futuro marido, meu pai. É curioso esse atavismo... O passado deve ter histórias terríveis de interação dos humanos com as baratas, imagino.

Uma doçaria deve ser uma espécie de paraíso para elas, imagino.


Mon, 04 Mar 2019 23:41:44 -0800 (PST)

Muito bom!

      sem assinatura

Obrigado.

Lembrei-me de você ao escrever...

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