Ser e Parecer

13/04/98



Há coisas que são e outras que são só para parecer... Você diria: isto é o óbvio, e diria ser o óbvio ululante, se você fosse o Nelson. Diante do que, eu responderia: parece... parece, mas não é... e mais: se tudo isso lhe parece mera brincadeira com palavras, saiba que também não é este o caso.

Como dizia, há coisas que são e outras que gostaríamos muito que fossem, mas que são impossíveis de forjar e, não são. Ponto. Apesar das aparências, falo sério. Há algum tempo, veio o convite para participar de uma nova ONG. Um grupo de pessoas, cheio de boas intenções, ia criar o tal organismo não governamental e... Bem, talvez aí esteja o núcleo do que não consigo falar: "boas intenções". (Diz-se que o inferno é repleto delas!) Na maior parte das vezes, temos mesmo ótimas intenções... também. Também, porque quase sempre, existem outras intenções, que não ousamos confessar em público e, talvez, nem mesmo para o padre ou para o analista. Isso, supondo que tenhamos consciência delas, dessas intenções subterrâneas, inconfessáveis, o que, nem sempre acontece...

A tal ONG se propõe a difundir um novo modelo de relações: humanas, empresariais, sociais, etc., Quer, de certa forma, trabalhar para o estabelecimento de uma nova sociedade. Ora, qualquer pessoa que olhe com verdadeiro interesse o mundo em que vivemos e a sociedade que construímos, sabe da necessidade e, até da urgência, de se estabelecer outra sociedade, que não tenha suas bases na avidez, na ganância, na competição, na inveja, etc.

Por coerência, todos que trabalhassem na tal organização seriam seus "donos", e dividiriam o lucro obtido com cursos, palestras eventos etc. Fui procurado várias vezes e convidado para fazer parte do núcleo, daqueles que ficam dentro do grande círculo na hora do pontapé inicial. Depois de duas reuniões, perguntei porque faziam tanta questão de minha participação. A resposta foi vaga, dizendo que eu tinha o "perfil" e sei lá mais que qualidades ideais, etc.

Como estivesse relutante - e, já, já explico porquê - alguém começou a enumerar as "vantagens" que uma ONG tem e que, naquele caso, se estenderiam aos participantes... Eis o ponto! (Já confessei mil vezes a tentação de importar uma ou outra expressão de outras línguas. "Voilà!", com o ponto de exclamação e tudo seria uma delas. Recomeço, pois.) Voilà! Ainda no útero e a organização que se propõe criar uma nova sociedade já se vê contaminada pelos males daquela que pretende substituir! Ao apontarem os proveitos que eu poderia usufruir, como parte da organização, já se colocava em prática os mesmos métodos capazes de provocar inveja, segregação, disputas e gerar ódio, desejo de vingança, etc. Tudo que foi necessário para gerar a sociedade que construímos, com olhos muito mais em nossos umbigos que na humanidade... E não eram poucas as vantagens! Os membros poderiam comprar carros por até um terço do preço, segundo foi dito, em nome da ONG, para seu próprio uso, por exemplo...

Fiquei de explicar porque estava relutante. Acontece que uma das primeiras condições exigidas para participar, era algo bastante vago e, definitivamente, com um aroma ambíguo, misto de fé e fanatismo: seria preciso acreditar "cegamente" na "causa da ONG", embora essa "causa" ainda não estivesse explícita em letra de fôrma e fosse muito vagamente pintada nas palavras... Estava relutante, também, por causa de tudo isso desdobrado aqui e que já existia embrionário em alguma dobra de mim.

Não sei se, agora a frase soa diferente para você, leitor improvável - vejo todos os leitores a quem os escritores de todos os séculos, de todas as línguas se referiram sempre são sempre virtuais, como os meus! Os leitores mencionados estão sempre na imaginação de quem escreve! - espero, leitor virtual e improvável, que a frase: "há coisas que são e outras que são só para parecer" já tenha, agora, um outro significado para você... Quando lidamos com a vida, é impossível fingir: ou é, ou não é. Ou sou uma pessoa simples, ou não. Posso desejar a simplicidade, posso me desfazer de todos os meus pertences e viver - como muitos na Índia o fazem - apenas de esmola e apenas com uma pequena trouxa e, ainda assim, ser uma pessoa muito complicada. Não posso conquistar a simplicidade só porque decidi ser simples. Não posso "jogar" com as verdades essenciais...

É inútil querer uma nova sociedade e fechar os olhos aos desejos ocultos, que me motivam. A sociedade é a soma de todos relacionamentos. Com os outros seres, com nossos desejos, com nosso mundo subterrâneo... Ela não poderá mudar se os homens continuarem os mesmos - e já posso adivinhar você a me dizer: isto é óbvio, o óbvio ululante, diria o Nelson Rodrigues... e eu teria que responder: neste caso, não só parece, é... Sim, é óbvio: não se pode mudar a sociedade, essa coisa abstrata, só se pode mudar o Homem.



|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|



117