Ululação

 

Briga de mulher é briga feia. Duplamente feia, feia ao triplo, até. Toda briga é feia, o que equivale dizer que é feio brigar. Alguns se encantam diante do embate de dois machos que disputam uma fêmea, quando se trata de outro animal, não o homem. Dos elefantes aos beija-flores, é comum os machos lutarem, ora por espaço, ora pela companheira. No bicho homem se espera que a razão possa substituir músculos e hormônios.

Quando são mulheres, que chegam ao extremo da agressão física, a coisa fica ainda mais feia, porque mulheres não foram feitas para brigar. A mesma razão que deveria solver sem brigas divergências, vê na mulher um símbolo - de mãe, de carinho, de ternura, de amor. Por isso, ao bicho que raciocina, a briga das fêmeas parece ainda mais terrível.

Imagine-se pois a cena das duas mães, que chegaram diante de Salomão, reclamando como seu o mesmo bebê. O primeiro impulso do príncipe poderia ter sido de jogá-las no calabouço, se calabouço houvesse, para ter um pouco de paz. No entanto, soube descobrir a verdade diante de todos, de imediato. A verdade só pode ser desvendada assim: quando se mostra, nítida e sem argumentos, para quem quiser ver.

Imagine-se, agora, que o príncipe, famoso por sua sabedoria, tivesse que cumprir os ritos e circunstâncias de um procedimento legal. Pior, que as duas mulheres chegassem acompanhadas de seus advogados, misturando argumentos e arrazoados aos berros do recém-nascido - seria um recém-nascido? Na melhor das hipóteses, o rapazinho - os processos são sempre muito demorados! - acabaria esquartejado e suas partes repartidas entre as duas senhoras.

O que quero dizer é muito simples: todo o aparato que se construiu, ao longo dos séculos, cristalizando as normas chamadas de leis e procedimentos e ritos para os tribunais, tudo isso que chamam Justiça e é simbolizado pela mulher vendada segurando a balança que se pretende imparcial, quase sempre serve apenas para desviar os olhos da verdade. Fazer a verdade transparecer deixou de ser o objetivo, único e decisivo, quando se pretende descobrir o que é justo sobre qualquer questão.

Os advogados têm um cliente. Têm mais olhos para o que chamam, com o habitual eufemismo, de honorários, do que para os fatos, dos quais a verdade poderia emergir. Em regra, buscam a forma oblíqua de fazer parecer, segundo o que interessa ao seu cliente, olham de viés e torcem o que já está claro e óbvio, causando, assim, mais confusão.

A verdade não precisa de argumentos, não carece de qualquer advogado. O que é, é e não depende do brilhantismo de nenhum rábula. Quase sempre fugimos da verdade. Não é fácil realize - a tal palavrinha, que não consigo substituir e o ótimo dicionário de Oswaldo Serpa traduz como "percebo como realidade" - que somos feios, egoístas, gananciosos, mesquinhos etc. Por isso, evitamos a verdade, construindo uma imagem mais agradável de nós mesmos para nós. Vivemos com essa imagem, cheios de medo de que a verdade possa algum dia nos mostrar como, de fato, somos.

Ora, a sociedade que fizemos reflete o nosso jeito de ser e agir. Não é surpreendente, portanto, que, também nos tribunais, a verdade seja evitada e se usem tantas firulas para apresentar as coisas como elas não são. Em vez de clamar contra advogados e juízes, pessoas que como nós se especializaram em driblar a verdade, melhor seria conhecer o advogado e o juiz que habitam nossas profundezas e, a cada instante, arrota argumentos e profere sentenças. Esse ser, que está em nós e somos nós, e julga o tempo todo cada pessoa, cada ato, cada situação!

Com certeza não somos um Salomão, capaz de olhar com simplicidade, despidos de preconceitos, uma situação e dar oportunidade para que verdade surja, límpida, bela e inquestionável, como a verdade sempre é.

Diria Nelson Rodrigues: é óbvio, é só olhar. Ou ouvir, a ululação.

 

Publicada Sexta-feira, 28 de Maio de 1999
 

 

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