A caligrafia que se vê aqui não é minha. Ouvi, ou li, em algum lugar, que a prensa de Gutemberg ou os tipos móveis - ou ambos, sei lá - foram eleitos como a mais importante invenção do milênio. Nossas abnegadas mestras já as citavam entre as "causas" dos "descobrimentos", contando histórias sobre uma época que criança alguma pode imaginar. E mais: colocavam a seu lado a pólvora, para que não restassem dúvidas de que era o Homem a inventar... Os americanos do norte adoram eleger o mais e o maior! Adoram os recordes e estimular a competição! Fazem seus livros de recordes e preparam desde o berço seus rebentos para arrebentar o rival. Acha-se até normal e repete-se como refrão que o importante é competir... Pressupõe-se que você torça para um time, para uma escola de samba que, em tudo, tenha um preferido... Pouco importa que ao eleger seu preferido, você esteja determinando, ao mesmo tempo, muitos, às vezes, milhares, às vezes milhões, bilhões de preteridos... Mas, como vocês já devem estar se acostumando, não era nada disso que queria falar...
Dizia que os tipos móveis, a letra de fôrma (pelas regras absurdas dos decretos aquele acento não existiria...) a letra de fôrma, dizia, não tem a imperfeição que torna humana e pessoal a escrita à mão. Só as máquinas podem dar à letra eternamente a mesma e repetida forma. A mão traduz, além do que se quer dizer, muito do que se quer esconder. Grafólogos se dizem capazes de desvendar pela caligrafia as qualidades e defeitos do escrevinhador. Já falei, certa vez, dos pequenos erros que marcam o que a mão do homem faz e de como, justamente essas falhas e lapsos involuntários, tornam humana a obra. O que aqui se lê tem a impessoalidade da letra de fôrma, pior: da letra de computador, que pode aparecer para você com uma forma diferente da fôrma que usei! Dependendo de fontes onde não há água a cantar... Tudo virtual, tudo de mentirinha! Enfim, falta o gesto da mão humana, esse instrumento deslumbrante, impossível de admirar na rotina estúpida de deslocar e fazer clique num rato! Sabendo que o ser humano se acostuma a tudo, não era nada disso que queria falar...
O que me trouxe ao tema é um desses mistérios que ficarão para sempre sem solução. Milhares devem se extinguir assim a cada dia. Não têm nenhuma importância, não dizem respeito a mais do que duas ou três pessoas. Não valeriam sequer uma crônica no mais remoto dos pasquins... e somem, desaparecem como o bafo úmido de uma vaca desaparece na atmosfera de uma manhã fria. Diante disso, decidi registrar aqui o mistério banal, como uma fotografia do bafo da vaca que aquece seu bezerro.
Eis o mistério... mas antes, ainda, é preciso dizer que se ele tivesse mesmo qualquer importância, teria procurado desvendá-lo na época, pois seria muito mais fácil. Não o fiz. Com o tempo, tornou-se um mistério definitivo, agora não há mais como desvendar. Aos fatos: há uns 30 anos chega uma encomenda pelo correio. (Não existia sedex nem nenhuma dessas "modernidades"...) Veio sem remetente, é óbvio e todo o mistério está aí. Abri, pois jamais me passaria pela cabeça a idéia de uma bomba e não havia bomba alguma mesmo, apenas um livro. Até aí, tudo bem. Poderia ter uma dedicatória no livro, e tinha! Mas, a dedicatória, também, não trazia assinatura ou nome. Dizia apenas: "A suprema união: o silêncio." O mais explícito desejo de silêncio que se possa imaginar. Na primeira folha, onde nada há impresso, esta frase apenas, escrita com caneta esferográfica, quase uma novidade na época.
Há a caligrafia, todavia. A falha da caneta no início do primeiro A. Letras que diminuem para o final de cada palavra. As parte superiores, principalmente dos esses maiúsculos, exageradas em relação ao resto. Há apenas a perna do pê, na parte inferior, o que é uma pena... Um grafólogo, provavelmente, diria se tratar da letra de uma pessoa inteligente, idealista, algo dissimulada e que impõe a si mesmo uma disciplina rígida, quase militar... Mas não sou grafólogo.
Nunca pude saber quem mandou o livro, cujo título é "O Descobrimento do Amor", editado pela Instituição Cultural Krisnamurti, Rio de Janeiro, Guanabara. Trata-se, assim, de um livro editado num estado que já não existe mais. As pessoas que, eventualmente, poderiam ter feito o presente secreto e às quais pude perguntar, negaram. Todas, ninguém tinha mandado o livro. Claro que fui olhar o carimbo para saber de qual agência do correio o livro tinha sido despachado. Não lembro mais, é óbvio, mas isso tampouco ajudou.
Que fique, pois, intocado o mistério do silêncio
de uma união que não consigo perceber, como fica
essa marca tão individual da letra de uma pessoa na página
amarelada, com as bordas manchadas, de um livro que li e reli
em busca de um amor que nunca descobri.
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