'Meu primeiro desenho' by  Anucha [1991]

Discurso ou divagação

10/12/08

Brandem mil e uma ameaças de catástrofes iminentes, da escassez hídrica a avassaladoras inundações, de temperaturas insuportáveis e cânceres epidérmicos a friagens infernais com seqüelas mortais,acenam com um vasto sertão por toda parte a fazer do planeta um Saara só ou, quiçá, uma nova era glacial. A multidão, todavia, se desnuda e parte em hordas intermináveis à cata de uma lambida salgada de onda do mar, a buscar em alvas areias recheadas de sereias o aconchego maternal de outros Olimpos.

É verão, primo, ainda que não o de cálculos astronômicos, mas verão na luz dura, no tempo inconstante, nas altas temperaturas e ventos desleais. Vê, essa lufada forte nos chega com ares de proclamação. A ela se curvam os ápices das árvores e nela se anunciam transtornos no clima, alguma das viradas traiçoeiras de verão.

Sobre estas coisas discorria ou divagava Primo Nicolau, enquanto preparava, com toda calma, um cigarrinho de plantinhas que colhera em sua horta pessoal, modesta e seleta plantação de vegetais fora das feiras livres. Eu, absorto, não sei dizer se me deliciava mais seu zelo caprichoso na preparação ou a fantasia a se avolumar como cúmulo-nimbo em seu discurso, que seguia:

Os instrumentos da forja de Mefistófeles são os mais cobiçados, nascem com o condão da sedução. Exímios em projetar promessas de felicidades e deslumbramentos irresistíveis, os artefatos, mero maquinário, parecem, como as sereias, dotados de voz e melodia de incontornável sedução.

O primo parou para acender sua obra. Puxou fundo e apertou os lábios sem respirar. O azul do céu se fechara num manto fofo de nuvens e o termômetro ainda subia, tarde afora. Às amigas e aos amigos, agora encapotados, entre gélidas rajadas e ameaças de neve, resta esperar: a Terra segue e, nas voltas, vira pra cá o lado de lá.

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