No fim da vida, minha avó, aos poucos, perdeu o paladar. Não sei por quê. Mas como morreu de câncer, suponho que uma coisa tenha relação com a outra.
Dela ouvi, pela primeira vez, a idéia de substituir as refeições por pílulas. Achava aborrecido comer.
Eu, que ainda sinto gosto e cheiro, detesto o que me parece uma ditadura do corpo, imposição que nos aflige, não raro, mais de uma vez ao dia. Coma ou te matarei!
A sentença intolerável nos pesa sobre as cabeças como a espada simbólica a ameaçar toda liberdade.
Tenho um parafuso torto, que me faz torcer o nariz a tudo que sabe ditatorial. Por isso, comer por obrigação me parece imolar não o que será devorado, mas aquele que se alimenta.
Sempre imaginei que os deuses o são porque ninguém os obriga a comer. Se o fazem, é por puro deleite e diversão.
Por outro lado, há os extremistas: mastigar lentamente 80 vezes cada bocado. Quem sabe, como galinhas e avestruzes, engolir algumas pedrinhas para ajudar a triturar... bem, nos falta a moela.
O fato é que comer dá trabalho. Que o digam as vacas dos pastos e toda a bicharada que da aurora ao pôr-do-sol labuta como escravo do próprio corpo. Cumpre alimentá-lo! Outras obrigações da natureza também dão trabalho.
Por deliberação voluntária, apelo maternal, bom-senso, fanatismo religioso ou teimosia ninguém se empenharia com tanto afinco a cuidar do bucho. O plano - seja de um grande arquiteto, fruto de mero acaso ou de milhões de anos da seleção do mais apto - o plano, dizia, parece infalível: que dê prazer!
O prazer garante o comer. E outras coisas mais. É simples assim. Somos escravos do prazer. A natureza comprou a todos com a moeda do prazer. E com que prazer nos vendemos! Dionísio, Baco, seja quem for o anfitrião, somos todos convidados: "venham crescer e multiplicar. A mesa é farta, a cama, macia".
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