Foca

22/04/98



- Malvina!

Foi um berro que se poderia ouvir no outro quarteirão. Pascoal não deixava qualquer dúvida sobre a urgência de falar com Malvina. Berrou outra vez:

- Malviiiiiiinaaaaaa!

E pensou lá com os botões de chifre de seu colete: primeiro, se ainda se fariam de chifre, os botões e depois, que no grito as palavras acabam com dois acentos... Pascoal, para quem não lembra, é chefe de reportagem num desses pasquins, que vendem muito só porque existe mais pobre do que rico.

Malvina veio, com os cabelos de anúncio de shampu e desprovida de qualquer tipo de porta-seios ou sutiã, como diz o dicionário. Notou, ao se aproximar, que os olhos de Pascoal baloiçavam num ritmo que era o seu... As coisas agora lhe pareciam mais fáceis e nunca se perguntou porquê. Desarmava o chefe com um sorriso, um trejeito, uma provocação, de forma intuitiva e... bem não vamos nos meter nos detalhes íntimos dos dois.

- Malvina, a geeme acaba de fazer o lançamento de um novo modelo. Convidou a imprensa em peso, jornais e televisões do mundo inteiro, revistas especializadas, toda essa baboseira, um grande auê, evento internacional, repercussão planetária etc. etc. O Pascoal falava sem conseguir olhar os olhos da estagiária. Estavam fixos em seu decote. Disse displicentemente: "Quero que você faça uma nota sobre isso", e continuou seu relato:

No dia, havia uma multidão de repórteres e guarda-costas. Era impossível dizer de se havia mais agentes da segurança ou da notícia. O presidente de geeme estava lá, pois queria apresentar pessoalmente ao mundo sua mais nova cria. O revolucionário automóvel vinha sendo anunciado como "o futuro do transporte pessoal" e outras bobagens parecidas, que os marqueteiros sabem disseminar... Existia todo tipo de especulação. Chegou-se a dizer que o carro poderia viajar no tempo, ir ao passado e ao futuro... palavras, meras palavras. Pascoal falava e babava no suave arfar da respiração da moça... Prosseguiu:

O momento crucial da apresentação seria a demonstração do Vitrines98 - era este o nome do novo modelo, acho que devido às amplas janelas panorâmicas, capazes de possibilitar um desfrute integral da paisagem - uma demonstração numa pista especial, cheia de frescuras também. Antes, no entanto, o presidente quis dar algumas explicações que, por sinal, já estavam impressas num release distribuído, junto com o tradicional monte de papel e brindes, para os cúmplices... quer dizer, repórteres.

Em síntese, o presidente explicou que diante das declarações do homem mais rico do mundo, sobre a evolução da indústria de informática e das comparações com a indústria automobilística, a geeme se sentira obrigada a desenvolver aquele novo "conceito de economia, conforto e transporte" - bota aspas nesse trecho! - Malvina anotava, com caligrafia precária. Pascoal seguiu: Enfim, disse que a geeme, se ainda não atingira os 25 dólares mencionados pelo outro e tampouco os 500 km/l, dava um passo nessa direção com o novo modelo... etc. etc. O de sempre.

Enfim - e Pascoal respirou fundo, finalmente despregou o olhar do minúsculo crucifixo de ouro naquele gólgota de carne, e disse - chegou a tão aguardada hora, o grande momento! Fazia pausas para aumentar o suspense. O presidente entrou no carro para, em pessoa, fazer a tal demonstração. Colocou os óculos, o cinto de segurança, virou a chave no contato e... nada! Neca! Nada, mesmo! Aconteceu, inclusive, que a chave travou a meio do caminho e não girava mais, nem para um lado nem para o outro. O presidente olhou para o batalhão de fotógrafos e cinegrafistas que se aproximou mais e sorriu. Lutou mais um pouco com a chave, olhou outra vez para flashes e objetivas, mais e mais perto e sorriu, mais amarelo do que da primeira vez... Uma voz explicou: "Presidente, travou!" Sempre há algum assessor idiota com uma explicação inútil e inoportuna. O dono e presidente da mais poderosa indústria de automóveis do mundo tentou sorrir pela terceira vez... não deu. Segurou o queixo, que provavelmente cairia para sempre sem o apoio, e disse apenas: "é por isso que este modelo ainda não está à venda..." E o Pascoal concluiu de supetão: põe isso no papel e traz pra eu ver.

Quando Malvina veio com a matéria para mostrar pro Pascoal, nem reparou em todos aqueles canalhas, veteranos de redação num pasquim, por trás do chefe, à espreita e, quando reparou, era tarde. Já estavam todos rolando de rir e fazendo troça da moça.

O Pascoal, como tinha terceiras e quartas intenções com o estágio da estagiária, dispersou o bando e se apressou para evitar o que se anunciava e poderia acabar num choro incontrolável. Político, disse a Malvina que ela estava contratada e aquele fora seu batismo de fogo. Explicou mais: que sempre inventavam uma história completamente absurda para pegar os focas, que jamais uma GM daria uma mancada daquelas, etc. etc.

E concluiu: coisas assim, só acontecem na indústria de software! Lá, um presidente é capaz de afirmar que "dependemos da tecnologia e nem sempre ela funciona..." Depois, defende seu produto assim: "... moro numa casa com muita tecnologia... Dependo de mais de 40 Windows para acender e apagar minhas luzes. Funciona, quase sempre." Ainda bem, para nossa saúde, que a indústria de automóveis não pensa assim...

 

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