Questionado sobre sua curiosidade quanto aos pensamentos e sonhos do autor (*), de seu criador como personagem, o cavalheiro não respondeu logo. Seu olhar se perdeu nos efêmeros plasmas azulados entre as chamas da lareira, pálidos fogos-fátuos, mas apenas seus olhos se detinham ali. Sua mente descortinava a inédita questão da relação entre as personagens e seu inventor. Passado um tempo, disse à dama: é complicado... veja, não sei seu nome e nem você sabe o meu. Pior, nenhum de nós sabe o próprio nome, pela simples razão de não ter ainda o autor escolhido um nome para nós... Pode ir até o final sem nos dar, a cada um de nós, um antropônimo, previsto no dicionário como "nome próprio de pessoa ou de ser personificado", o nosso caso, de personagens, seres não batizados por pai e mãe e, muitas vezes, nada sabemos de nossa ascendência... Tudo depende do autor, tudo pode, ou não, passar por sua cabeça. Você acha possível influenciar suas "divinas" decisões? Possível à personagem interferir na mente do autor? Ao terminar, o cavalheiro sem nome se ajeitou no sofá próximo à poltrona mole, onde a dama se estendia a imprimir um leve movimento circular a seu copo. Desaparecera-lhe o ar alegre e quase zombeteiro. Ela molhou os lábios em seu drinque e ponderou: ah, tudo, absolutamente tudo que nos ocorre, nossas falas, pensamentos e ações, tudo passa antes pela mente do autor. Ele é como Deus criador do céu e da terra e dos bichos e das gentes e dos micro-organismos. Os dois bicaram seus aperitivos e, então, o cavalheiro refletiu: acho que qualquer interferência de uma personagem na mente do autor existiu antes como ideia em suas próprias lucubrações sendo, portanto, via de mão única. — Por isto mesmo, nada impede uma personagem de especular sobre os devaneios de seu autor, argumentou a dama. |
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