auto-retrato [1988] 

Silêncio encantado

12/08/11

Fui levar o lixo para os lixeiros da manhã e notei uma noite clara, a propor luzes apagadas. Ergui os olhos e a lua, suspensa no vértice da abobada, estaria cheia dentro de pouco mais de um dia. Tudo parecia especial - as árvores com galhos nus ou com ralas folhas de uma primavera precoce desenhavam sombras nítidas e minuciosas no chão. Dei-me conta, então, da razão do silêncio encantado a transformar o cenário cotidiano em excelsa amplidão: todos os postes estavam com suas luminárias apagadas!

As ruas enluaradas e desertas, era cerca de uma hora, pareciam resgatar a paisagem original. Original para mim, é óbvio, o vazio de quando cheguei há 34 anos por aqui. A quinta-feira já fora um dia agradabilíssimo, onde afazeres se encaixavam tornando aprazível o labor. Agora, a madrugada começava esplêndida, sob um luar restaurado pela falta de luz. Quando deixei o lixo no lugar habitual, um canto antigo se ergueu do fundo da noite, pálido, quase imperceptível mas, por evocar tempos antigos, aguçou-me a adição e logo me certifiquei: curiango!

Caminhei um pouco pelas ruas desertas na direção de onde me perecia vir o som. O canto, de fato, se fez mais forte. Não ouvi o dueto tão comum antigamente, onde uma voz soava mais perto e, no silêncio que se seguia, era possível escutar muito ao fundo outro curiango replicar. Hoje, havia a pausa, mas nela o fundo calava.

Lembrei-me de existir outro relato como este... Repito-me! As obsessões do Nelson nos repetem 'do berço ao túmulo'! Voltei para conferir a singularidade desta noite sem luz. A lua descambava para oeste entre folhas de uma palmeira. Em vez da ave, cães ladravam, aparentemente irritados.

As ruas já pareciam outras com sombras mais oblíquas. Ao cessarem os latidos aquele silêncio encantado de novo se estendeu.

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