Costumava haver um slogan aqui, foi banido.

Apenas outro sonho

28/07/15

Entretida no pequeno visor de seu telefone esperto, Maria Rita não percebeu quando a gaivota, em voo rasante, tentou pegar algo entre seus cabelos. A bicada lhe machucou o couro cabeludo e doeu bem no alto da cabeça, além de sujar de sangue seus dedos depois que tentou apalpar a pele em meio a cabeleira vasta.

Poderia ser uma cena de Os Pássaros, de Hitchcock, mas vinha apenas da imaginação de Clara, muito atenta ao relacionamento das pessoas com seus telefones portáteis, estúpidos ou espertos. No barulhento vagão do metrô, sacudida por solavancos advindos da movimentação do trem, Clara se deixava embalar nesses devaneios sem rédeas, como aquele do ataque da gaivota e, agora, tentava decidir se lhe vestiria o rigor de uma explicação lógica, como algum faiscar, um brilho intenso entre as mechas negras dos cabelos de Maria Rita, por exemplo, produzido por... por quê? Perguntava-se o possível motivo do reflexo quando um sacolejo mais brusco em um trecho em curva lhe jogou por cima um senhor corpulento, vestido com apuro e leve olor de alfazema.

O choque das massas determinou passagem violenta do universo onírico ao mundo material, palpável e a provocar cada sentido. Esvaiu-se ali Maria Rita e a gaivota agressora sem se poder saber se o brilho entre os cabelos fartos viera de alguma jóia, uma tiara, talvez, ou de alguma gota ali caída da ponta de uma folha ou do que mais pudesse refratar ou refletir um raio de sol.

Ao fechar o caderno, pois se aproximava a estação onde deveria descer, Dartiu percebeu claramente Clara e o homem perfumado também se dissiparem no manto de sonhos perdidos, evocado por Luis Buñuel, em Meu Último Suspiro e, ao deixar o trem, perplexo, questionou sua própria realidade: existiria ou seria, também ele, mero sonho ou devaneio de algum deus ou deusa?

continua

Tue, 28 Jul 2015 09:05:47 -0700 (PDT)

tah ficando interessante ...
diz-se no budismo q isso tudo q a gente vive, eh um sonho
como nos sonhos noturnos, apenas um sonho, a vida "real"
ja q na epoca do Buddha ainda nao se falava em realidade virtual

serah q a gente estah chegando mais proximo da realidade de q a vida eh um sonho?
como nos sonhos dormindo?

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Não sei, sou absolutamente analfabeto em budismo. por muito tempo sonho (do sono ou não) e 'realidade' me pareceram equivalentes e permutáveis. Agora, creio ser muito difícil perceber cada fato como é e viver com apenas fatos, sem os véus das fantasias.

Sei lá de estarmos nos aproximando disso ou daquilo. A violência e barbárie crescem na mesma medida das facilidades advindas do engenho humano. Um ser surpreendente pela crueldade e pela engenhosidade.


Wed, 29 Jul 2015 17:12:43 -0300

Que sabor especial tem o seu texto, sempre.
Inclusive quando você traz de volta uns lances
de outros tempos & maneiras de contar.

Queremos mais.

bjos

      sem assinatura

Vem-me o ímpeto de exclamar 'generosidade sua', mas paro: por que desconfiar?
Que bom você gostar, me resta observar. Obrigado.
Tentaremos continuar.


Sat, 1 Aug 2015 11:18:52 -0300

ficção, hein? muito bem! acabei me perdendo sem saber quem era o primeiro sonhador.
Você conhece Dartiu, psiquiatra?

      sem assinatura

Não, escolhi o nome por sorteio. Gerei um número randômico e vi a que nome correspondia na lista infindável, já com mais de 21 mil.

Pelo que entendi, a primeira sonhadora era Clara, não?

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