Crônica do dia

Blues

07/12/05

Há um anúncio que pretende simular o grito e a risada histéricos de uma bruxa. A cada vez que o rádio o repete ouço uma outra risada, inesquecível e amiga, impossível de descrever ou imitar e que se perdeu para sempre. Ao ouvi-la quando era freqüente em outros tempos, muita gente dizia que a iria gravar a risada impar a ecoar e produzir silêncio para a escutar. Eu mesmo pensei, mais de uma vez, em fazer tal registro. Ninguém gravou.

O tempo pôs ponto final na risada inusitada e eu quero pôr outro nesta mania de fotografia, neste vício de colecionador de fragmentos. Fragmentos de imagens, de sons, de poemas, de vidas, da vida. Vida que não se pode fragmentar, pois cada fragmento de vida é morto como, de resto, imagens, cacos e sinais, também. Eis o que queria dizer.

Em minha relação com a fotografia, no fundo e meio inconscientemente, sempre houve um grito histérico de zombaria, um dedo acusador de donzela horripilante a me apontar colecionador de restos, de vestígios do que foi.

desenho de Walter Linsenmaier do livro Insects of the World
desenho de Walter Linsenmaier do livro Insects of the World

Desde a pré-história, das carcaças de cigarras da infância - em verdade, exúvias, mas só o soube muito depois - do fascínio e horror às bandejas bordadas de borboletas azuis de um Pão de Açúcar altaneiro sobre multidões das mesmas morfos e outros lepidópteros e milhões de insetos impossíveis de capturar em redes ou filmes, pois a vida é efêmera e bela e frágil e deslumbrante e só pode ser... vivida, nada mais.

Um vício, todavia, se transforma em nossa própria fibra e até hoje tenho saudade do tabaco. Mais de seis anos e parece que a vontade de fumar aumenta. Ah, até quando olharei a vida pelo visor da câmera em que me transformei?

Ri, risada bendita no fundo de mim. Ri alto, risada inigualável, pois muitas vezes somos apenas o que não queremos ser. Ri inimitável como grito que há muitíssimo espero e não sai, não consigo gritar.

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